
um caderno para janaina wagner
arquivo de programa exibido em junho de 2024





considerações
Não é incomum confrontarmo-nos com imagens iconoclastas no trabalho de Janaina Wagner. Registros de demolições de edifícios em grande escala, desastres naturais, incêndios ou até mesmo a obliteração de paisagens naturais por meio de práticas extrativistas predatórias. A destruição está, de alguma forma, à espreita e segue viva na esteira dos ideais modernistas de progresso que fundaram a república, como evidenciado pelo reiterado interesse da artista na história e na paisagem do Norte do país.
A variedade de enfoques, técnicas e suportes explorados na produção de Janaina faz com que cada um de seus trabalhos estabeleça lógicas e experiências de fruição bastante particulares. O esforço contínuo de estabelecer intertextualidades a partir do seu conjunto de referências, aliado à sua habilidade de tradução poética por meio da manipulação da imagem e da palavra — num exercício refinado de edição e montagem — marca fortemente suas obras tanto no cinema quanto nas artes visuais. Esses trabalhos abrem uma interface de engajamento ativo com o espectador, convocando-o a deambular por um mundo de imagens híbridas que escorrem das bordas da tela e ganham materialidade para se moverem livremente em diferentes espaços expositivos.
Não surpreende, portanto, a incorporação de elementos tão simples quanto díspares, como, por exemplo, a canção Chuva de Prata em LICANTROPIA, um dos filmes mais reconhecidos da artista. Nele, Janaina experimenta transportar toda a mística que cerca a figura do lobo no imaginário universal para cenas cotidianas. O termo hora do lobo, referenciado no curta-metragem LOBISOMEN, faz alusão ao clássico de Ingmar Bergman e remete ao suposto momento intersticial do dia em que mais pessoas nascem e morrem simultaneamente. Enquanto LOBISOMEN se cerca de referências e citações do cinema e da literatura para estruturar sua narração verborrágica — a fim de escancarar o projeto de destruição decorrente do extrativismo predatório no Brasil —, filmado num único grande plano geral aéreo, LICANTROPIA, por outro lado, parte de uma lógica de montagem dinâmica que mistura um conjunto de imagens e sons captados pela diretora com arquivos da história do cinema e da literatura que fazem referência à figura mágica do licantropo, tradicionalmente associada à loucura e à desrazão.
Tratam-se de dois trabalhos polissêmicos que adotam estratégias distintas do ponto de vista formal ao tangenciarem temas vizinhos: desrazão, ruptura e destruição à luz da experimentação artística.
paisagem, corpo e artifício
As viagens de Janaina Wagner à região amazônica renderam alguns de seus principais trabalhos, a exemplo de CURUPIRA E A MÁQUINA DO DESTINO, que comenta a imposição de um projeto político de modernidade e exploração colonial da Amazônia, fortalecido pelo regime militar na segunda metade do século XX. As paisagens naturais e humanas do Norte, acometidas por um lastro de violência destrutiva que se repete ad nauseam ao longo da história, fazem vizinhança com outros filmes da diretora, como ESTRADAS FANTASMAS — curta composto por um longo plano-sequência que enquadra duas mulheres estendendo um lençol branco numa estrada de terra batida, sobre o qual incide a projeção de uma imagem animada indistinta.
O comportamento peripatético da protagonista de CURUPIRA, em referência direta à Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, converte-se na força motriz do filme, que reatualiza mitos folclóricos e adiciona novas camadas ao repertório de representação visual da Amazônia no audiovisual brasileiro. Em ambos os curtas, o corpo e a agência das mulheres revelam-se em simbiose plena com as paisagens que as cercam — estejam elas inertes ou em movimento —, mediadas a todo momento pelo artifício e pelo truque próprios do cinema.
literatura, pintura e feitiço
A sequência de imagens acima é extraída de GREEN FLESH, GREEN FLASH, trabalho em que Janaina Wagner volta a operar com ferramentas de intertextualidade, articulando um conjunto de referências fílmicas e literárias a partir de um motivo disparador bastante simples: ela projeta uma tripa de película 16mm, revestida por tinta acrílica, sobre a superfície de uma lápide identificada como sendo de Mary Wollstonecraft — mãe de Mary Shelley, autora de Frankenstein. A sepultura, apresentada de forma escultórica e totêmica, entrelaça fios difusos sobre criatividade, memória e o apagamento de mulheres na história da arte.
O título do curta faz alusão ao clássico de Éric Rohmer, Le Rayon Vert, que irrompe em fragmentos entrecortados ao longo da montagem. Como em outros trabalhos da artista, este filme carrega um caráter multidisciplinar que o expande para além da caixa-preta tradicional, podendo ser apresentado em formato de instalação audiovisual — com projeção em duas telas, em espaço expositivo aberto (branco ou não) — e instaurando novos regimes de temporalidade e espacialidade. Essa prática de experimentação da imagem animada em diálogo com o espaço de exposição, cuja herança remonta ao cinema de exposição fortalecido com o advento do vídeo e dos projetores portáteis na segunda metade do século XX, radicaliza-se à medida que as tecnologias de captação e exibição audiovisual avançam e se tornam mais acessíveis.
Ainda no campo do hibridismo, a materialidade impressa na tela por meio da representação escultórica da lápide de Wollstonecraft transborda do filme para uma série de pinturas a óleo homônima. São trabalhos que exploram o fenômeno do rayon vert em outro suporte. Neles, a magia da imagem — reclamada pela artista em sua narração e lançada ao espectador como um feitiço — estira raios esmeralda sobre um mundo negro em chamas.
dar corpo ao imaterial
O cenário amazônico é reavivado em CÃES MARINHEIROS. No filme, Janaina Wagner viaja ao Velho Airão e a Igapó-Açuem — território onde missionários portugueses fundaram, no final do século XVII, uma pequena vila voltada à extração de borracha. Após um período de crescimento e prosperidade alavancado pela prática extrativista, seguiu-se uma decadência aterradora. Os inúmeros detritos acumulados pelo tempo hoje servem de testemunho histórico, fundindo-se à arquitetura arruinada da vila e marcando o retorno implacável da natureza. Narrado em inglês formal, o filme adapta o conto homônimo de Herberto Helder — uma fábula sobre cães que têm marinheiros como animais de estimação — transportando-o para o universo peculiar do norte do país.
As questões políticas que atravessam a região amazônica — sua história de exploração violenta, do período colonial à República — cercam o filme de maneira constante, como a própria natureza à espreita, reencenando seu ciclo de destruição e renascimento.
Convém reparar e reiterar o fascínio de Janaina pela mitologia das figuras caninas, evidenciado recentemente em sua instalação audiovisual comissionada pelo Pivô (SP), intitulada BALEIA FANTASMA. Baseada em imagens de arquivo da adaptação de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, a instalação se estrutura a partir de uma combinação de recursos materiais bastante simples, que interpolam poéticas das artes visuais e do cinema. O resultado é uma espécie de escultura animada imaterial — um ectoplasma flutuante — que dá corpo à cadela Baleia, imortalizada por Graciliano Ramos.
reinvenção do arquivo
A manipulação de arquivos audiovisuais, evidente a esta altura, se manifesta de forma inventiva em alguns dos seus principais trabalhos. Citações diversas, do cinema à televisão, se emaranham num tecido multiforme de referências.
Em O FUTURO JÁ COMEÇOU, a artista se vale da sensação compartilhada de universalidade das vinhetas da rede globo, recuperando arquivos que remontam os anos 70, para remodelar-las num exercício de edição e montagem distorcida, causando estranhamento e desconforto. A sensação de horror subjacente a essas imagens e sons que evocam uma gentrificação grotesca, tão familiar ao público brasileiro, se amplifica enquanto a tela derrete diante dos nossos olhos, emulando algo próximo de um poltergeist.
ainda sobre animalidade, destruição e variação de suporte
A animalidade monstruosa presente em trabalhos como VENTURA, GADO FRANKESTEIN, FARANDOLE CAVALO E CARRO, MORTINHOS e CRIATURA reforça a insistência na escatologia destrutiva que aparece com frequência nas experimentações audiovisuais de Janaína. Ferramentas como animação digital, dilatação da taxa de quadros, múltiplas telas, trilha dissonante e deslocamento da imagem para espaços alternativos, atravessam não só essas obras em específico, mas apontam para a versatilidade de repertórios e suportes sobre os quais a artista se debruça na sua prática transdisciplinar.